domingo, 9 de novembro de 2014

As origens de uma escolha

Assisto na TV um programa sobre os 25 anos da queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989. Na minha memória, a queda aconteceu na faixa dos 14 anos - que completei em maio de 90. Tenho um especial carinho por esse assunto. Ele é a primeira razão que registro para que eu conscientemente escolhesse minha profissão.

Por razões quase pueris, eu acompanhava, dentro dos limites da minha pouca idade, muitos assuntos de política externa. Primeiro, a política de Thatcher, de quem ouvi falar pela primeira vez quando Diana se casou com Charles. Eu tinha cinco anos e achei impressionante que houvesse uma princesa de verdade, com um vestido tão lindo e imenso; e uma rainha de verdade, com coroa e manto. Depois, os recortes de jornal sobre o IRA, por causa das músicas do U2. Então, vieram a Perestroika, a Glasnost e a Queda do Muro.

Então, em 1989, eu vi Silio Boccanera e um jovem Pedro Bial cobrindo o que identifiquei  como realmente um momento histórico; um misto de festa e destruição.  Pela primeira vez, em frente à TV, eu sabia que aquilo era "como quando o homem pisou na Lua"; eu sentia ser contemporânea de um momento histórico.

E fiquei fascinada. Fascinada com a possibilidade de ter uma profissão que registrava a matéria-prima para o que seria História; fascinada com a ideia de estar ali tão profundamente ligada ao presente; fascinada com a ideia de ouvir histórias de pessoas que se tornariam os relatos da História; fascinada por ajudar a colocar um tijolo para construir o que permaneceria para sempre; e fascinada com o paradoxo de que, naquela ocasião em particular, "colocar o tijolo" era exatamente mostrar a destruição concreta e real de uma cicatriz que separava um país.

Para mim, na prática, o jornalismo não aconteceu de um jeito tão romântico, nem aventureiro, nem tão ingênuo assim. Desde cedo fui para a área corporativa, cuidar da comunicação que empresas precisam estabelecer com seus clientes, colaboradores, parceiros, fornecedores e com o mercado em geral. Gosto do que faço, gosto do meu trabalho cotidiano.

Mas sempre que penso ou vejo algo sobre a Queda do Muro de Berlim, me sinto de novo com 14 anos; me lembro com carinho e ânimo da beleza, do sonho e da aventura que me fizeram pensar, pela primeira vez, em fazer a escolha que fiz.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Além da razão

Terminei neste fim de semana de ler "Morangos Mofados" (Caio Fernando Abreu). A primeira vez que li esse livro foi em 1996 e, na época, ele não me pareceu nada demais. Mas, agora, na releitura, ele me "pegou" e achei-o muito mais incrível que da primeira vez.

Foi uma leitura de (re)descoberta, daquelas que a gente faz aos poucos, a conta-gotas, para que o livro não acabe. Fiquei "morando" no livro, como disse um amigo. Fiquei querendo decorar os trechos, para depois me lembrar deles, para, de alguma forma, represar aquele encantamento, aquele primeiro impacto, aquele maravilhamento que a leitura me causou.

Fiquei procurando razões racionais. A voz narrativa de "Morangos Mofados" é muito poderosa. A literatura confessional cola o narrador ao ouvido do leitor. Eles trocam segredos, confissões, cartas. Eles se identificam nas fragilidades, nas transgressões, nos desejos, nos sonhos irrealizados. Mas isso é o racional.

O que me aconteceu - e foi inédito numa releitura - foi esse livro me pegar bem pelas entranhas.Foi ele ter-me tocado a alma, foi ter-me agitado o espírito e acendido o olhar para recantos algo adormecidos.

Ali, escritas, experiências tão diversas das minhas experiências, de repente faziam um sentido transcendente para mim. De repente significavam algo que eu ainda não consegui decifrar completamente.

"Morangos Mofados" me pegou de assalto e eu ainda não sei bem o porquê. Ele tocou em mim em algo para além das explicações racionais. Por isso, talvez, deem a isso o nome de arte. Foi para mim uma epifania. Como dizem os franceses, étonnant.

sábado, 13 de setembro de 2014

Cada livro tem duas histórias

Fui desafiada por amigos leitores compulsivos e vorazes a participar de uma troca de livros. O termo "desafio" é por minha conta. Na verdade, é só uma brincadeira, um convite, um jeito de trocar paixões: livros que não fazem mais sentido para você e podem fazer sentido para outra pessoa.  E esse "sentido" pode ter várias interpretações: pode ser algo que você estudou e já não estuda mais, uma edição antiga que você já atualizou, um livro que já não te diz mais nada.

Olhei as estantes em busca de algo. E foi aí que me descobri possessiva e ciumenta (não que eu não soubesse dessa minha característica antes, mas ficou isso patente naquele momento). E foi aí que descobri que, para mim, cada livro não conta apenas uma história, conta duas: a história que nele está escrita e a história dele comigo.

Comecei pelo óbvio: livros que não faziam mais sentido para mim, que ocupavam lugar de outros que poderiam chegar. E constatei, atônita, que cada livro tem um lugar nas estantes que o acomoda tão bem que dali ele não precisa ser retirado mais. Mas venci esse primeiro sentimento e tomei a iniciativa de tirá-los dali.

Passei os olhos: um por um, contavam uma história de um pedaço da minha vida. O primeiro livro que li sem figuras, ainda criança, com 6 anos de idade; o livro que foi assunto da minha primeira resenha numa revista de cultura; a pequena coleção dos "Livros do Mal", que revelou escritores que admiro muito, como Daniel Galera; livros que trouxe de viagens que fiz; livros que li na graduação e que marcaram minha vida; livros que li para a minha dissertação; livros que arrematei de uma biblioteca particular que doara volumes para ajudar uma instituição beneficente; livros que ainda não li e livros que já reli muitas vezes.

Descobri, com pasmo, que conheço essa segunda história de quase todos os livros de minha estante. Descobri que eles contam partes da minha vida que não estão em diários e que achei que estariam esquecidas, como a grande parte das histórias cotidianas, mas não estão. Descobri que seria muito difícil me apartar deles.

Foi uma viagem afetiva. E, ao final dela, consegui selecionar cinco. Cinco livros que agora terão três histórias: a que trazem impressa, a minha e a de quem os quiser receber.


quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Da porta para fora, silêncio

Às vezes, tem tanta coisa acontecendo dentro da gente que é preciso calar o exterior para ouvir o íntimo.
Às vezes, o mundo interno impõe tantos desafios que o mundo externo fica simplesmente empalidecido.
Às vezes, as letras minúsculas se acumulam tanto que torna-se maiúsculo ordená-las.
Às vezes, a superfície é plácida porque não enxergamos o fundo.
Às vezes, é preciso reprogramar o código-fonte.
Às vezes, a gente não sabe por onde começar.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Acerca de uma frase de Ana C.

Naufragamos cotidianamente, afogamo-nos na imensa tarefa de sobreviver. Esquecemos de olhar ao redor. E a imensidão torna-se um aquário, translúcido e calmo, que cabe na palma da mão, no enquadramento míope e desfocado da rotina, até que a poesia nos faça emergir.

Alaguemo-nos de vida. Que possamos nos perder na imensidão e alargar as fronteiras desse pequeno vaso de cristal.

***

""É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço." (Ana C.)


terça-feira, 6 de maio de 2014

Alienando?

Saiu no jornal e virou assunto nas redes sociais a notícia de que O Alienista, de Machado de Assis, será relançado, "simplificado" por uma autora que conseguiu patrocínio via Lei de Incentivo Fiscal. Serão 600 mil exemplares distribuídos gratuitamente pelo Instituto Brasil Leitor.

Confesso que, entre os 10 e 12 anos, li algumas adaptações de clássicos, como Sonho de uma noite de verão. Era a série "Reencontro", da Editora Scipione, neste caso com texto adaptado por Ana Maria Machado. Aliás, para escrever este texto, fui à estante resgatar esse exemplar e vi, na capa, o aviso, em forma de selo: "Obra selecionada para o Programa Sala de Leitura MEC/FAE". Esta edição, em especial, tem um texto honesto sobre a vida e obra do autor, além de uma ilustração bem didática sobre os personagens. É uma adaptação em prosa, o que também facilita a leitura da obra.

Só por isso, já seria incoerente de minha parte dizer-me contra adaptações. Mas acontece que, no caso do livrinho com a adaptação de Shakespeare, a obra foi pensada para ser lida por crianças. A questão é que, se você conhece aos 12 anos uma meia dúzia de histórias clássicas (mesmo que adaptadas), seu repertório se alarga e você ganha background que lhe possibilita - se quiser - encarar os clássicos no original (ou em boas traduções) de peito aberto, sem medo das "dificuldades" que são, muitas vezes, inerentes a obras que estão distantes do tempo e da realidade em que o leitor vive.

Não sou do tipo que acha que "filmes sobre livros perdem a riqueza original da obra". Pode até ser que isso aconteça, mas o fato é que, ao transpôr um livro para o cinema, cria-se outra obra, feita em uma plataforma diferente, que exige outros critérios de análise crítica. Mesmo quando um texto literário vai para o cinema ipsis litteris, ao final o que se tem é outra obra, que não pode, nem deve, em minha opinião, ser julgada com os mesmos critérios estéticos (porque cinema é feito de imagem e som, não só de palavras, para ficar em apenas um argumento básico).

O problema, neste caso que agora gera polêmica, penso, é que parece que o objetivo é "simplificar" a leitura de um clássico para pessoas que já teriam idade e condição de lê-lo no original. Parece-me que exclui-se da cena a figura do professor, que ajudaria o aluno de ensino médio a caminhar por essas veredas áridas e que ocuparia um papel fundamental: o do facilitador, aquele que media a relação entre o aluno e o livro, que apresenta este àquele; que auxilia aquele a decifrar este - gramatical e literariamente.

Pelo que li, a simplificação vai se dar basicamente no âmbito do vocabulário, para ajudar os estudantes a entenderem a "historinha", o enredo do livro. Ora, se o mais importante em um livro fosse a história que se conta, a forma como essa história é contada poderia ser esquecida e, então, só precisaríamos de uma história de cada "plot" (e, nesse cenário absurdo, quem precisaria de Dom Casmurro quando se tem Othelo?)

Transformar versos em prosa, livros em filmes, ou poemas em canções não me parece nenhum problema. Recriar uma obra (e aqui é preciso lembrar o trabalho árduo e muito importante dos tradutores) não é apenas válido, mas louvável em muitos casos.

Penso que a questão que se põe aqui é como usar essa "simplificação". A que ela servirá? A apresentar o enredo de um clássico para estudantes? De que idades? E qual será o papel dos professores, em sala de aula, diante desta adaptação?

Por fim, é sempre bom lembrar que temos todos o direito de saber o que será feito desta simplificação (a palavra foi atribuída à autora em uma entrevista que li). Afinal, ela foi produzida com dinheiro que empresas deixaram de pagar em impostos para o Estado - impostos que deveriam, em tese, beneficiar a todos os cidadãos brasileiros, seja por meio de saúde, educação ou cultura.

sábado, 15 de março de 2014

Origem de uma paixão (melhores momentos)

A pergunta, diagramada num daqueles quadrinhos típicos de Facebook, era: "Qual escritor fez você se apaixonar por literatura?". Poderia parecer simples para alguém que como eu, tem paixão por livros, línguas e literatura. Mas, para meu próprio espanto, não foi simples responder.

O óbvio seria responder "Machado de Assis", tema do meu Mestrado. Só que a verdade é bem mais complexa que o óbvio, tanto na vida real e em suas questões metafísicas quanto numa pergunta aparentemente simples.

O fato é que eu não sei de onde vem essa paixão, essa ânsia, esse tesão por literatura. Por estranho que pareça, a mim parece que essa paixão é construída ao longo de uma história que está longe de terminar, mas que eu não sei onde começou.

Várias vezes, durante minha longa vida de leitora, um livro me arrebatou; alguns autores levo-os no coração e na cabeceira, leio-os, releio-os e sempre me parecem novos. Mas, sim, existem alguns marcos.

Não me esqueço do primeiro "livro de gente grande" que li, aos seis anos de idade: Sandra na Terra do Antes. Eu o chamava assim porque ele não tinha figuras; só texto. Não esqueço de, às escondidas, com uns oito ou nove anos, subir em banquinhos para alcançar nas prateleiras mais altas da estante da sala  livros de Sidney Sheldon, que meus pais diziam que era "livro de adulto". Lia-os na ânsia de descobrir porque eles não eram para minha idade e, logo depois, passei à Agatha Christie. Tudo graças ao Círculo do Livro, uma espécie de clube de vendas por catálogo que fazia os associados realizarem compras mensais de "grande obras da literatura". No colégio, descobri clássicos como José de Alencar e Machado de Assis. Mas não me esqueço mesmo é de Pedro Bandeira e de A Marca de uma Lágrima.

Na adolescência, li Clarice, Pessoa, Machado e Nelson Rodrigues, autores de alguns dos meus livros de cabeceira. A faculdade foi um tempo de ebulição. Descobri muitos autores novos (para mim), como Borges e Cortázar, que até hoje releio: são fundamentais. Caio Fernando Abreu e Leminski, com cujas obras tive contato nessa época, foram reveladores. Nessa época, também, eu decidi estudar francês por causa de um livro que ganhei dos amigos, no meu aniversário de 19 anos: uma edição bilíngue de As flores do mal, que me fascinou. Mas a "formação" de minha paixão não acabou na adolescência. Tardiamente, depois dos 20, descobri Ana Cristina Cesar e acompanhei em "tempo real" - desde a época do CardosOnline - o surgimento de autores que hoje eu adoro, como Daniel Galera.

Por tudo isso, me parece complexo, impossível e injusto dizer que um só autor teria me despertado a paixão pela literatura. Espero que novas descobertas de velhos autores e novos autores estreantes continuem instigando essa minha paixão.



segunda-feira, 10 de março de 2014

Reencontros

Por diversas razões, tenho pensado muito no tema "reencontros". Não exatamente reencontros com pessoas, mas reencontros com ideias e desejos, aspirações e inspirações.

Neste final de semana que passou, por exemplo, eu me reencontrei com uma canção, Starman. Fui à imperdível exposição sobre David Bowie (em cartaz até 20/4/2014), de quem aprendi a gostar tardiamente, influenciada pelo Darcio Ricca (na época meu namorado; hoje, marido).

O problema é que, quando comecei a gostarde Bowie, já tinha passado os primeiros anos da adolescência ouvindo a versão brasileira de Starman, que o Nenhum de Nós batizara de O Astronauta de Mármore. Sim, Starman é muito mais legal; sim Bowie é um grande artista, absolutamente revolucionário. Mas por alguma razão - talvez a letra difícil, talvez o costume de recorrer à primeira versão que conheci - Starman nunca fora uma canção que me tivesse tocado profundamente.

Até que eu me "reencontrei" com ela na exposição. Não só com ela, mas com a histórica apresentação que Bowie fez no Top of the Pops e com a letra manuscrita pelo próprio autor, rabiscada, editada, repensada por ele. Claro que a exposição ajuda, cria um clima favorável para que você se envolva. E eu realmente  me emocionei.

Ver aquele manuscrito teve o mesmo efeito, em mim, que ver uma obra de arte. Foi como se, antes daquele momento, eu só tivesse ouvido reproduções da obra, que não me deixassem tomar contato com sua aura. E, de repente, eu ressignifiquei Starman. E, como que num passe de mágica, comecei a gostar dessa canção como nunca antes gostara. Eu a reencontrei e a compreendi, como se nunca a tivesse ouvido antes.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Adultecer

Tenho percebido, muito por coisas que acontecem ao meu redor, que tornar-se adulto, crescer, amadurecer e envelhecer são temas muito difíceis de lidar.

Uma menina pergunta se aos vinte anos ela já não estará velha para entrar e encarar o primeiro ano do seu primeiro curso de graduação. Um homem de menos de 40 anos fala com nostalgia dos lugares em que passou a juventude, sem se dar conta que - pensando apenas na expectativa de vida média - ele ainda tem metade de sua vida para viver.  Uma jovem mãe posta numa rede social uma lista de coisas que a "definem" como mãe. E nenhuma delas é sobre o amor ao bebê, mas sim sobre banhos apressados e sobre assistir a desenhos na TV mesmo quando a criança não está ao lado dela.

Tudo isso me faz ficar tomada por uma certa angústia e, por mais que isso, uma dúvida: será obrigatório sentir nostalgia e  melancolia quando o tema é tornar-se adulto?

Quando era criança, eu não via a hora de crescer, para poder fazer o que eu quisesse, para poder levar minha vida como eu achasse melhor. E agora, que tenho condições sociais, financeiras e psíquicas para tal, será obrigatório sentir melancolia?

Pois eu não troco a vida que tenho hoje pela vida que tinha aos 15 anos de idade. E muito menos aos 10, aos 7, aos 5 anos. "Adultecer", para mim, foi muito bom. Mesmo que tenha trazido responsabilidades, trouxe também desejos e prazeres.

Mas fico me perguntando que melancolia é essa, da busca pela madeleine de Proust, dessa evocação e convocação quase mórbida do passado.

Será que não é possível, mesmo a seres humanos adultos, que pagam suas contas e vivem em liberdade, escolherem seus destinos, ou ao menos a forma como vivem? O que os impede?

O que impede uma menina de vinte anos de começar (aqui nem cabe o re-começar)? O que impede um homem de 40 de voltar a andar pelas mesmas alamedas, ainda que elas - e ele -  tenham mudado? O que impede que uma mãe zelosa, de vez em quando, saia para tomar um chopp com as amigas, veja um filme instigante e discuta filosofia?  O que impede uma mulher ou um homem de fazer o que deseja e aquilo que lhe dá prazer, a qualquer momento, em qualquer tempo?

O que (n)os detém?